Nanda Moura
Quarentena
Lançado em 8 de dezembro/2021
'Quarentena' é o meu primeiro álbum. Ele nasceu em plena pandemia, durante o período de confinamento, e por isso traz esse nome. Um período de grandes incertezas, de muitas perdas, de muita tristeza e de muita reflexão.
Então, não é um álbum de músicas animadas. Pelo contrário, é um álbum que nasceu em um momento de "luto coletivo" e reflete aquele momento.
A capa, da talentosíssima artista plástica Stephanie Corvett, transmite bem a sensação vivida, de solidão, de escuridão, de ausência.
Gostaria que tivessem em mente esse conceito, ao ouvirem o álbum.
Para que a experiência seja ainda mais proveitosa, aconselho que usem fones de ouvido. E, para contextualizar melhor, leiam as descrições de cada faixa.
Produção: Lord Have Mercy Records
Captação de áudio, mixagem e masterização – Fábio Mesquita - Studio Making Of
Faixas
Nobody's Fault But Mine
Gravada pela primeira vez em 1927, "Nobody's Fault But Mine" é uma composição de Blind Willie Johnson, cantor, compositor e guitarrista de Blues, considerado um dos maiores guitarristas slide de todos os tempos.
Blind Willie Johnson teve, como primeiro instrumento, uma Cigar Box Guitar (guitarra feita de caixa de charutos), fabricada por seu pai, quando ainda era criança (6 anos de idade). A Cigar Box tornou-se um instrumento comum durante a Grande Depressão, uma vez que tinha um custo baixo e podia ser fabricada em casa.
Nesse contexto de crise é que surge "Nobody's Fault But Mine", uma canção que fala sobre a necessidade de responsabilidade pessoal e de fazer as escolhas certas.
"Nobody's Fault But Mine", que quer dizer "Não é culpa de ninguém, mas minha", entra no álbum como uma reflexão sobre a capacidade que temos de perceber que muito do que colhemos, somos nós mesmos quem plantamos. As consequências das nossas escolhas, sejam elas boas ou ruins, virão.
Essa música foi gravada somente com voz e acompanhamento de Cigar Box Guitar, em reverência a Blind Willie Johnson e à Cigar Box e sua ligação com as origens do Blues.
Clique aqui para ouvir a versão original de Blind Willie Johnson.
2. Grinnin' In Your Face
Grinnin' In Your Face é uma composição de Son House (Eddie James House, 1902-1988)
Son House foi um influente cantor e guitarrista de blues, com gravações famosas como "Death Letter" e "Preachin' The Blues". Son House, como vários outros músicos das décadas de 1920 e 1930, acabou ficando mais conhecido a partir da década de 1960, com a repopularização do Country Blues.
Grinnin' In Your Face, em sua gravação original, tem uma interpretação muito singular, por ter como acompanhamento o bater de palmas lento e irregular de Son House. Na música, Son House aconselha: "Não se importe que as pessoas riam na sua cara". Mais à frente ele fala, diretamente a quem ouve: "Eles não se importam como você está tentando viver/Eles vão falar de você mesmo assim". E como um consolo a quem se feriu pelo sorriso mal intencionado de alguém, ele diz: "Um amigo verdadeiro é difícil de encontrar".
Em tempos de tanta falta de empatia, essa música se faz necessária pra quem já se sentiu, de alguma forma, ridicularizado por alguém que acreditava ser amigo: "A true friend is hard to find". Não se importe com quem riu de você. Ninguém pode te parar, e o seu caminho só você pode fazer!
A intenção em interpretar essa canção com o acompanhamento único das palmas, como na gravação original de Son House, se dá porque é incrível a ideia de que outros recursos pra fazer música, ali, não são necessários! O canto puro, o bater das palmas, vai ao mais rudimentar que a música pode parecer ao ser humano. Só há a música, e só a mensagem é o que ecoa.
Cantar "à capella" é exaustivo, demanda muito do sentimento e da energia, mas o resultado é de uma pureza ímpar que, muitas vezes, não se mostraria se houvessem acompanhamentos.
Clique aqui para ouvir a versão original de Son House.
3. Hard Times Killing Floor Blues
Composta por Skip James (Nehemiah Curtis James, 1902-1969), "Hard Times Killing Floor Blues" é uma das músicas mais interessantes que eu já ouvi!
Foi gravada no ano de 1931, em plena Grande Depressão, um período de enorme crise econômica, e embora tenha quase 100 anos de existência, é uma música atemporal, e não por acaso, se encaixa muito bem nos dias atuais.
Ela relata muitos dos problemas vividos na época, principalmente pelo povo negro, como o desemprego, a pobreza, o racismo e a disciminação na força de trabalho.
Skip James cita os abatedouros de animais, os "Killing Floor", que muitas vezes eram os únicos lugares que empregavam pessoas negras, e que eram considerados sub-empregos.
Um dia eu estava lendo uma matéria sobre a empresa de coleta urbana, e os acidentes que o lixo mal embalado causava. Logo em seguida, vi uma foto mostrando os formandos de uma faculdade de medicina, todos brancos, e uma equipe recém contratada de garis, absolutamente todos negros.
Eu já namorava essa música a um tempo, vi que ela se encaixava tão bem nas imagens que vi, de um país tão desigual, cuja história de escravidão tão longa e dolorida ainda hoje tem consequências sociais enormes, que achei importante colocar ela no álbum.
O violão usado nessa gravação foi o Resonator, que tem um timbre único, meio "anasalado" que gosto muito. Além disso, era um instrumento comum ao período em que a música foi gravada, precedendo a eletrificação da guitarra. A afinação em Ré menor aberto dá a essa música um clima pesado e sombrio, características fortes nas canções de Skip James. E o capotraste na 4ª casa ajuda a ajustar o tom da música à minha voz.
Eu confesso que me sinto muito atraída por músicas que "soam menores", como se fossem pesadas, literalmente. Simplesmente me capturam. Eu canto e termino cansada... Mas satisfeita.
Clique aqui para ouvir a versão original de Skip James.
4. Devil Got My Woman
"Devil Got My Woman" é mais uma canção marcante de Skip James.
Uma composição de 1931, essa música tem um som sombrio, quase etéreo, onde Skip James relata ter roubado a mulher do seu melhor amigo, e chora o fato de ela ter sido roubada de volta por ele.
Devil Got My Woman fala sobre a dor da traição: “Eu preferia ser o diabo do que ser o homem daquela mulher”, como ele diz logo no início da música. Em outros momentos ele parece se referir ao amigo como o próprio diabo que levou seu amor embora.
Amor e traição são temas muito frequentes no Blues, mas eu vou além, quando ouço “Devil Got My Woman”.
Todos nós, em algum momento da vida, nos sentimos frustrados por conta de uma traição, seja ela num relacionamento amoroso, de amizade, ou até mesmo de trabalho. E a confiança é sempre o ponto que sofre o maior abalo. O lamento de Skip James, com todos os recursos que se utiliza para interpretar, transmite perfeitamente esse sentimento.
James usa uma afinação em Ré menor aberto, como costumava fazer, e a voz em falsete, o que deixa o seu estilo com um ar pesado que, confesso, me atrai como nenhum outro.
Para essa versão, foi utilizada uma afinação em Mi menor aberto, e o violão Resonator, cuja sonoridade me ganha quando o assunto é blues dos anos 30.
Clique aqui para ouvir a versão original de Skip James.
5. Found My Baby Crying
"Found My Baby Crying" é uma composição de Lightnin' Hopkins (1912 - 1982). Cantor, compositor e guitarrista de blues do Texas, Lightnin' teve como maior influência o bluesman, também texano, Blind Lemon Jefferson, com quem tocava e convivia.
Hopkins é conhecido pelo estilo peculiar, pelos "bordões" musicais e me chama a atenção, particularmente, a sua forma de cantar. Com um timbre grave único, ele facilmente passeia por oitavas diferentes do início ao final de uma mesma frase.
A música "Found My Baby Crying" foi gravada em 1965, e fala de um homem que chegou em casa e encontrou sua mulher chorando, por conta das dificuldades financeiras, e ele consola: "Não chore, baby, as coisas estão prestes a mudar".
A crise financeira, durante a pandemia, tem afetado muita gente, e é impossível ouvir essa letra e, imediatamente, não fazer essa ligação com as condições de dificuldades em que muitos vivem hoje.
A interpretação dessa música, no violão, tem muitos dos "bordões" que Lightnin' usava. Algumas referências simplesmente não podem deixar de serem apresentadas. E como cantora, apaixonada que sou pelo estilo de cantar do Lightnin' Hopkins, reverencio-o a cada verso.
E não esqueçam... As coisas estão prestes a mudar.
Clique aqui para ouvir a versão original de Lightnin' Hopkins.
6. Trouble So Hard
"Trouble So Hard" é uma composição de Vera Hall (1902 - 1964), cantora e compositora norte-americana, que passeava entre os estilos de Blues, Folk, Spirituals e Work-Songs.
Vera Hall não foi uma artista muito conhecida, mas sua contribuição para a cultura da música negra é inquestionável! Ela acabou ganhando maior visibilidade quando foi gravada por John Lomax para a Biblioteca Nacional norte-americana, ao final dos anos 1930.
Trouble So Hard foi gravada a primeira vez em 1937, num estilo de cantar que lembrava os cantos dos escravos das plantações de algodão, quando uma voz principal fazia o chamado e as outras vozes respondiam.
"Oh, Lordy, trouble so hard
Don't nobody know my troubles but God"
Essa parte da música fala: "Ninguém conhece meus problemas, mas Deus."
A canção de Vera Hall fala de um momento feliz no início, e de um momento muito triste, no final. Isso, aliado à frase "Ninguém conhece meus problemas, mas Deus", nos traz uma reflexão sobre como nós julgamos a vida do outro. Cada um tem os seus problemas, os seus momentos bons e ruins. Cada um sabe a alegria e a dor que carrega dentro de si, não cabendo a nós julgá-las. Mais uma canção atemporal, que se faz necessária em tempos de tanta falta de empatia, como os de agora.
As referências usadas para construir essa versão foram inúmeras. A cigar box aparece, mais uma vez, trazendo uma sonoridade mais suja e crua, que me agrada demais!! O acompanhamento do stomp box, nessa música, dá a ela uma força incrível. E a modificação da melodia original de uma única nota para o trio melódico tradicional de Blues, deu a cara que eu queria, a minha.
Clique aqui para ouvir a versão original de Vera Hall.